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O Fato Social da Bitcoin e sua Dimensão Jurídica Tributária

Tax Law

02 de fevereiro de 2017

I – INTRODUÇÃO

De acordo com a clássica Teoria Tridimensional, o Direito é um produto cultural da sociedade, formado pelo fato social; pelo valor atribuído à tal fato; e pela norma jurídica, que decorre da interação deôntica entre fato e valor.

Neste sentido, nas lições do consagrado professor Miguel Reale:

“ Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)”[1]

Posto em conta a simples existência dos vários signos atribuídos à palavra Direito, percebe-se que, onde quer que se encontre alguma forma de ordenação jurídica, haverá sempre um fato social originário; um valor conferido a este fato, que lhe atribuirá uma conotação axiológica, determinando alguma ação ou omissão que objetive a finalidade valorada; e, por derradeiro, uma norma jurídica, representada pela relação que aquele fato e aquele valor têm entre si.

Assim, podemos concluir que “a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram.” [2]

Neste passo, independente do sistema jurídico existente em que esteja inserido, o Direito tende a acompanhar o devir da sociedade, seja por meio do processo legislativo, seja por meio dos costumes, ou então mediante a atividade da jurisdição.

Com efeito, é certo que, desde o inicio da XXI centúria, a ligeira evolução tecnológica vem apresentando fatos que não eram antes tratados pelo Direito, em razão de seu ineditismo recente na sociedade (e. G.: A polêmica questão do Uber, que surgiu por meio de novas tecnologias desenvolvidas por uma startup, oferecendo, através de aplicativos, serviços de transportes individuais de caráter público, todavia à margem da regulamentação gerida pelos órgãos públicos competentes para tanto).

Este fenômeno percebido atualmente foi denominado de “Sociedade da Informação”, por se tratar de uma decorrência do rápido avanço, em um curto período de tempo, das tecnologias de comunicação e da consequente globalização.

Conceituando o termo Sociedade da Informação, Eduardo Capellari diz o seguinte:

“É fruto dos crescentes investimentos nas tecnologias de informação – destaque-se recentemente a rede mundial de computadores – que provocam uma nova divisão social do trabalho e apontam, por conseguinte, para uma nova sociedade” [3]

Diante deste quadro fático em que a sociedade se entremostra, nos deparamos com uma situação inédita: a utilização e circulação de moeda virtual, que utiliza um sistema digital peer-to-peer (ponto a ponto, em uma tradução livre), de forma criptografada, subsistindo no mundo fenomênico dos fatos sociais e econômicos, entretanto sem sofrer qualquer tipo de regulamentação por parte de nenhum Banco Central ou Governo no que se refira a sua cotação. Esta moeda é a Bitcoin.

II – DIMENSÃO FÁTICA E AXIOLÓGICA DA BITCOIN

Em razão de não depender da chancela de um órgão controlador centralizado ou de uma instituição financeira, a Bitcoin é emitida por meio de uma série de bancos de dados espalhados através das conexões da rede peer-to-peer, para que assim sejam efetuadas suas transações. Deste modo, por meio de criptografia em código aberto, são oferecidas a segurança e as funções de tal sistema, de modo a garantir que a Bitcoin tenha propriedade e transferências semi-anônimas de valores, bem como que só poderão ser gastas pelo dono adquirente, sem perigo de gastos duplos e falsificação.

Um lote Bitcoin é gerado por volta de 6 (seis) vezes a cada hora, e é distribuído aleatoriamente. Este ato é chamado de “minerar”. Neste passo, a quantia de Bitcoins geradas por lote nunca passa de 50 (cinquenta), sendo que esse valor está programado no para encolher com o passar do tempo, de sorte que o total de Bitcoins criadas nunca passará de 21.000.000 (vinte e uma milhões).[4]

A Bitcoin, por ser utilizada como moeda e por possuir valor econômico, nos mostra, por certo, como o ambiente virtual influencia a sociedade, se revelando um verdadeiro fato social (e econômico, neste caso).

Ademais, também resta nítida a carga axiológica de aceitação atribuída pela sociedade à essa criptomoeda, vez que sua utilização cada vez está mais difundida entre as pessoas.

III – DIMENSÃO JURÍDICA

Com efeito, o Direito, como não poderia deixa de ser, tende a acompanhar o fato social da Bitcoin, lançando sua tutela sobre as relações jurídicas dele decorrentes, visando prover uma pacificação social e uma segurança jurídica sobre os conflitos oriundos de tais relações.

Nos Estados Unidos da América, o Financial Crimes Enforcement Network(FinCEN) emitiu, em 2013, um relatório sobre as moedas virtuais, classificando-as como formas de pagamento distintas de moeda, razão pela qual não estariam submetidas ao Bank Secrecy Act (Lei de Sigilo Bancário), eximindo portanto todos os cidadãos americanos utilizadores da Bitcoin das obrigações legais decorrentes do uso de uma moeda comum. No entanto, o órgão consignou que qualquer pessoa que emita moeda virtual deve o fazer observando e respeitando a legislação vigente, em caso de venda de moeda virtual por moeda nacional. [5]

Todavia, como os Estados Unidos da América possuem um sistema baseado na utilização de precedentes judiciais, no qual a jurisdição se faz uma das principais e mais eficazes fontes do Direito, a Bitcoin ganhou um tratamento jurídico próprio de acordo com sua utilização, valoração e função na sociedade.

Assim, na contramão do entendimento inicial do FinCEN, o Juiz Federal do Distrito do Texas, Amos L. Mazzant, emanou, durante o processo de julgamento do caso SEC v. Shavers, entendimento de que a Bitcoin estaria submetida aos mandamentos legais da Bank Secrecy Act. Isto, em virtude de ser utilizada como dinheiro e de possuir a mesma finalidade de uma moeda convencional.[6]

No referido caso, Trandon Shavers, operador do Bitcoin Savings and Trust (BTCST) – um fundo de investimentos – foi processado pela Securities and Exchange Commssion (SEC), acusado de operações financeiras fraudulentas envolvendo um valor acumulado de 700.000 Bitcoins.

Em uma análise mais crítica, percebe-se que o entendimento do magistrado texano se amolda com mais perfeição à realidade social da Bitcoin, como ainda reflete a carga valorativa que tal fato recebe da sociedade, que vem utilizando a moeda virtual como se moeda comum fosse.

No mesmo sentido, temos também o entendimento proferido no caso U. S. V. Faiella. Neste processo, Robert Faiella foi acusado de operar dinheiro ilegalmente (unlicensed money transmitting business) e de conspirar, juntamente com Charlie Shrem (CEO da BitInstant), para fornecer Bitcoins aos usuários do site Silk Road (site de venda de mercadorias ilícitas, principalmente drogas e armas, que operava nos domínios da Deep Web).

Diante da análise do caso concreto, o Juiz Federal do Distrito de Nova York Jed Rakoff rejeitou a defesa de Faiella, decidindo que a Bitcoin se trata, sim, de dinheiro, submetendo-se, portanto, à legislação aplicável à espécie.

Isso, pois, segundo o raciocínio do magistrado, a Bitcoin se qualifica na definição comum de dinheiro, qual seja “algo aceito como um meio de troca, uma medida de valor ou um meio de pagamento”.[7]

Outra oportunidade em se afirmou a natureza jurídica pecuniária da Bitcoin foi no julgamento do caso U. S. V. Ulbricht.

Neste processo, o réu era acusado de hackear, traficar drogas e lavar dinheiro, ao dirigir e coordenar a administração do já mencionado site Silk Road, através do qual eram vendidos materiais ilícitos em troca de pagamento em Bitcoin.

Em sua defesa, Ross Ulbicht apresentou alegação de que o tipo penal de crime de lavagem de dinheiro não se aplicava à utilização de Bitcoin, em razão da lacuna em sua definição legal.

No entanto, a Juíza Federal do Distrito de Nova York, Katherine Forrest, rejeitou os argumentos de que a lei penal não se aplicaria à utilização da Bitcoin, eis que naquele caso a moeda digital foi utilizada para fins de lavar dinheiro obtido ilegalmente. [8]

Em sentido contrário, temos o precedente State of Florida v. Espinoza, pelo qual o Tribunal da Flórida rejeitou a acusação de lavagem de dinheiro envolvendo Bitcoin.

Em sua decisão, ao julgar a moção de defesa (motion to dismiss) oposta pelo Réu, a Juíza Teresa Mary Pooler resolveu não julgar Espinoza por crime de lavagem de dinheiro, por entender que a Bitcoin não é considerada forma de dinheiro diante do sistema financeiro da Flórida.[9]

A Juíza ainda fez constar que a natureza da Bitcoin ainda está longe de ser compreendida; e que a moeda digital tem pela frente um longo caminho a percorrer antes de ser considerada equivalente à dinheiro.

Com efeito, independente da controvérsia quanto a natureza jurídica pecuniária da Bitcoin, vislumbra-se, ante os juízos de realidade e de valor percebidos nos precedentes judiciais acima citados, que a Biticoin é uma realidade econômica que vem recebendo tutela jurídica, o que revela, portanto, sua capacidade de ensejar crimes financeiros, relações jurídicas obrigacionais e até mesmo relações jurídicas tributárias.

IV – A BITCOIN COMO FATO GERADOR DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

Em 2014, a Internal Revenue Service (agencia pertencente ao U. S. Departament of Treasury e responsável pela coleta de tributos e interpretação das normas tributárias nos EUA) emitiu entendimento de que a Bitcoin é tratada como propriedade para fins de impostos federais nos Estados Unidos da América.[10]

Deste modo, os princípios gerais de Direito Tributário aplicáveis à transferência de propriedade são aplicáveis às transações que tem como utilização a Bitcoin.

No âmbito do Direito brasileiro, a Receita Federal do Brasil declarou que as Bitcoins “se equiparam a ativos financeiros para fins tributários”, mesmo sem possuir regulamentação especifica dentro da legislação pátria. [11]

Deste modo, o Imposto Sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza deve incidir sobre os ganhos auferidos por meio da Bitcoin.

Empenhado na conceituação doutrinária de renda e proventos de qualquer natureza, Roque Antonio Carraza tece a seguinte definição:

“(…) renda e proventos de qualquer natureza são acréscimos patrimoniais experimentdos pelo contribuinte ao longo de um determinado período de tempo. Ou, caso preferirmos, são o resultado positivo de uma subtração que tem por minuendo os rendimentos brutos auferidos pelo contribuinte entre dois marcos temporais, e por subtraendo o total das deduções e abatimentos que a Constituição e as leis que com ela se afinam permitem fazer.”[12]

Nesta esteira, o inciso IV do artigo 55 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR), dispõe o seguinte:

“Art. 55. São também tributáveis:

(…)

IV – os rendimentos recebidos na forma de bens ou direitos, avaliados em dinheiro, pelo valor que tiverem na data da percepção;”[13]

Levando tal conceito legal como premissa maior, podemos considerar a Bitcoin como provento de qualquer natureza, vez que, por possuir valor econômico e cotação que permite sua tradução em pecúnia, seu recebimento consiste em acréscimo patrimonial ao adquirente.

Portanto, independente de regulamentação específica, é certo que a Bitcoin se mostra um verdadeiro fato gerador de Imposto de Renda. Um fato jurídico tributário.

V – CONCLUSÃO

Como foi visto no decorrer do presente artigo, o Direito tende, naturalmente, a acompanhar os novos fatos que surgem com as novas tecnologias, no sentido de pacificar os conflitos decorrentes; bem ainda para trazer uma segurança jurídica às relações oriundas de tais fatos.

De outro bordo, restou demonstrado também que, na atual Sociedade da Informação, o ambiente virtual pode ensejar relações que se desencadeiam no mundo fenomênico dos fatos, sendo a Bitcoin um grande exemplo disso.

Assim, diversas relações passam a surgir com a utilização da moeda virtual, fatos estes que clamam a tutela jurídica estatal, seja ela jurisdicional ou legal.

Uma das imediatas relações que são geradas com a utilização da Bitcoin é a relação jurídica tributária, que compreende tal fato inserido em uma estrutura normativa (o RIR de 1999), erigida em função de axiomas financeiros e econômicos que melhor satisfazem a sociedade.

VI – BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Decreto nº 3000 de 1999. Regulamento do Imposto de Renda. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3000.htm> Acesso em 29 de janeiro de 2017.

CAPELLARI, Eduardo. Tecnologias de informação e possibilidades do século XXI: por uma nova relação do estado com a cidadania. In: ROVER, Aires José (org.). Direito, Sociedade e Informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000.

CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda: perfil constitucional e temas específicos. 2º ed revisada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2006.

Circuit Court of the Eleventh Judicial Circuit in and for Miami-Dade County – Florida. State of Florida v. Espinoza.

FinCEN. Application of FinCEN’s Regulations to Persons Administering, Exchanging, or Using Virtual Currencies. Disponível em: < https://www.fincen.gov/sites/default/files/shared/FIN-2013-G001.pdf >. Acessado em: 26 de janeiro de 2017.

Internal Revenue Service. Notice 2014 – 21. Disponível em: < https://www.irs.gov/uac/newsroom/irs-virtual-currency-guidance>. Acesso em: 29 de janeiro de 2017.

NAKAMOTO. Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em: 25 de janeiro de 2017.

REALE. Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva, 3º ed. São Paulo, 1976.

U. S. District Court, Southern District of New York. U. S. V. Ulbricht.

U. S. District Court, Southern District of New York (Manhattan). U. S. V. Faiella.

U. S. District Court. Easthern District of Texas. SEC v. Shavers.


[1] REALE. Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva, 3º ed. São Paulo, 1976. P. 65

[2] Op. Cit. P. 67

[3] CAPELLARI, Eduardo. Tecnologias de informação e possibilidades do século XXI: por uma nova relação do estado com a cidadania. In: ROVER, Aires José (org.). Direito, Sociedade e Informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. P 29.

[4] NAKAMOTO. Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em: 25 de janeiro de 2017.

[5] FinCEN. Application of FinCEN’s Regulations to Persons Administering, Exchanging, or Using Virtual Currencies. Disponível em: < https://www.fincen.gov/sites/default/files/shared/FIN-2013-G001.pdf >. Acessado em: 26 de janeiro de 2017.

[6] U. S. District Court. Easthern District of Texas. SEC v. Shavers: “It is clear that bitcoin can be used as money. It can be used to purchase goods or services, and as Shavers stated, used to pay for individual living expenses. […] it can also be exchanged for conventional currencies, such as the US dollar, Euro, Yen, and Yuan. Therefore, Bitcoin is a currency or form of money, and investors wishing to invest in BTCST provided an investment of Money” Disponível em: <https://ia600904.us.archive.org/35/items/gov.uscourts.txed.146063/gov.uscourts.txed.146063.23.0.pdf>. Acesso em: 26 de janeiro de 2017.

[7] U. S. District Court, Southern District of New York (Manhattan). U. S. V. Faiella: “Money in ordinary parlance means ‘something generally accepted as a medium of exchange, a measure of value, or a means of payment’. (…) Bitcoin clearly qualifies as ‘money’.”

[8] U. S. District Court, Southern District of New York. U. S. V. Ulbricht: “Bitcoins carry value – that is their purpose and function – and act as a medium of exchange. Bitcoins may be exchanged for legal tender, be it US dollars, euros, or some other currency. Accordingly, [the defense’s] argument fails (…) There is no doubt that if a narcotics transaction was paid for in cash, which was later exchanged for gold, then converted back to cash, that would constitute a money laundering transaction. One can launder money using bitcoin.” Disponível em: < http://www.nysd.uscourts.gov/cases/show.php?db=special&id=416 > Acesso em: 27 de janeiro de 2017.

[9] Circuit Court of the Eleventh Judicial Circuit in and for Miami-Dade County – Florida. State of Florida v. Espinoza: “This court is unwilling to punish a man for selling his property to another, when his actions fall under a statute so vaguely written that even legal professionals have difficulty finding a singular meaning.” Disponível em: http://www.miamiherald.com/latest-news/article91701087.ece/BINARY/Read%20the%20ruling%20 (. PDF) . Acesso em: 29 de janeiro de 2017.

[10]Internal Revenue Service. Notice 2014 – 21. Disponível em: < https://www.irs.gov/uac/newsroom/irs-virtual-currency-guidance>. Acesso em: 29 de janeiro de 2017.

[11] Informação extraída do site Valor Econômico. Disponível em:< http://www.valor.com.br/financas/3507132/receita-define-regra-para-taxacao-de-ir-sobre-bitcoins> Acesso em: 29 de janeiro de 2017.

[12] CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda: perfil constitucional e temas específicos. 2º ed revisada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2006. P.38.

[13] BRASIL. Decreto nº 3000 de 1999. Regulamento do Imposto de Renda. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3000.htm> Acesso em 29 de janeiro de 2017.

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