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Programa Mover e a reforma tributária: estímulos fiscais ambientais

Claudia Cristina dos S. Abrosio, Vitória Machado de Madureira / Tributário

15 de fevereiro de 2024

Por Claudia Abrosio e Vitória Madureira

Com as mudanças climáticas tornando-se cada vez mais devastadoras, é indiscutível que o dever de defesa ambiental cabe a todos. É preciso desenvolver programas e estratégias econômicas que possam auxiliar nos problemas socioambientais de forma que o desenvolvimento urbano sustentável alcance todo planeta.

Diante das inúmeras preocupações ambientais, uma das frentes que requer atenção imediata é a poluição atmosférica decorrente da emissão de gases de efeito estufa. Essa é uma questão desafiadora, na medida em que o modelo econômico atual se sedimentou, justamente, na utilização de combustíveis fósseis como fonte de energia, processo que reflete na emissão de gases prejudiciais ao meio ambiente.

Como reduzir a emissão de poluentes sem afetar a economia global? Qual é o caminho para solução? Há uma solução?

Pois bem. O conceito de sustentabilidade ambiental está intrinsicamente ligado à proteção ecológica, vinculando-se diretamente ao crescimento econômico e ao direito ao desenvolvimento, internacionalmente reconhecido pela Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, no seu artigo 1º, §2º.

O meio ambiente, por sua vez, é um direito previsto no artigo 225 da CF, sendo que o Estado e toda a sociedade têm o dever de protegê-lo. Ou seja, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado atua concomitantemente como “direito” e “dever”.

É nesse pano de fundo que, por meio de políticas públicas intervencionistas, o Estado pode e deve estabelecer tratamento diferenciado no ordenamento para garantir a proteção ambiental, a depender do impacto criado para as presentes e futuras gerações, conforme a previsão do artigo 170, inciso VI, da CF e outros dispositivos constitucionais.

Nessa narrativa, a cada piscar de olhos, percebemos novos estímulos para pesquisa de desenvolvimento e práticas de consumo e industrialização ambientalmente sustentáveis.

Dentre as políticas públicas intervencionistas, a extrafiscalidade dos tributos atua como instrumento de tutela ambiental, na medida em que esse mecanismo tem por finalidade impulsionar propósitos específicos, estimulando ou inibindo determinadas condutas no ordenamento e privilegiando valores constitucionais.

Esse foi o intuito do recém instituído Programa Mobilidade Verde Inovação (Mover), pela MP nº 1.205, publicada em 31/12/2023.

O Mover é uma extensão do antigo Rota 2030 e tem por objetivo a ampliação das exigências de sustentabilidade da frota automotiva, bem como o estímulo à produção de novas tecnologias nas áreas de mobilidade e logística. Em síntese, o programa estabelece diretrizes referentes à descarbonização mediante a concessão de benefícios fiscais e contrapartidas por parte da indústria automobilística.

IPI servirá como incentivo

O programa introduz o “IPI Verde” como mecanismo de incentivar a produção de veículos com menor emissão de gases de efeito estufa (descarbonização).

Essa mensuração será realizada pelo critério de medição “do poço à roda”, que engloba o ciclo integral da fonte de energia empregada na produção, uma inovação do antigo “tanque à roda”, utilizado no Rota 2030. A previsão é de que, a partir de 2027, seja instaurada a medição “do berço ao túmulo”, que abrange a pegada de carbono de todos os componentes e de todas as etapas, seja de produção, de uso ou de descarte.

Clarividente que essa normativa vai ao encontro da seletividade do IPI, prevista no artigo 153, §3º, inciso I, da CF, pela qual a carga tributária deverá ser instituída com maior cuidado, conforme a espécie do produto e o seu impacto na cadeia produtiva.

Outra inovação é a instituição do regime de autopeças não produzidas, sobre o qual haverá a redução do imposto de importação (II) para fabricantes que importam peças e/ou componentes não produzidos no Brasil, cuja relação será regida pela Camex.

Esse programa é de adesão facultativa e a habilitação das empresas é condicionada à realização anual de investimentos no Brasil no importe de 2% sobre o valor aduaneiro em projeto de pesquisa, desenvolvimento e inovação em programas de apoio ao desenvolvimento do setor automotivo.

Outro incentivo é a concessão de créditos financeiros correspondente a 50% dos investimentos em P&D e em produção tecnológica realizados no Brasil, limitado a 5% da receita mensal de venda de bens e serviços, excluídos os tributos incidentes sobre a venda.

Para projetos de relocalização de plantas industriais, benefício equivalente ao II incidente na transferência das células de produção e equipamentos, além de abatimentos no IRPJ e na CSLL, relativos à exportação de produtos e sistemas elaborados no Brasil.

Cumpre observar que a OCDE já reconheceu a importância dos tributos como instrumentos políticos fundamentais para redução de danos ambientais [1].

Países desenvolvidos estão à frente nos incentivos fiscais

Os países mais desenvolvidos utilizam há anos o mecanismo da extrafiscalidade, inclusive no tocante à adoção de incentivos fiscais para veículos elétricos.

O estado da Geórgia (EUA), por exemplo, prevê a concessão de crédito fiscal para carregadores de veículos elétricos e carros convertidos para funcionamento por combustíveis alternativos (menos poluentes) [2].

O estado da Califórnia (EUA) ainda prevê uma meta mais arrojada. A partir da previsão de que, até 2035, todos os veículos novos comercializados serão elétricos, o Estado introduziu a isenção de imposto sobre veículos elétricos de transporte coletivo e sobre a energia consumida, além de abatimentos fiscais [3].

A China também vem adotando uma espécie de tributação seletiva, conforme a capacidade energética e sustentável do veículo individual ou corporativo [4].

Essas medidas ambientais são necessárias para que a sociedade não apenas atenue os danos causados até o momento, mas também priorize novas condutas na relação do homem com a natureza, desestimulando ou estimulando ações.

Dessa forma, os programas fiscais têm o intuito de, além de internalizar os custos ecológicos, incentivar um desenvolvimento e um consumo sustentável. Para tanto, faz-se uso das balizas do direito tributário ambiental, pela concessão de benefícios derivados da extrafiscalidade.

Além do IPI, o IPVA e o ICMS também se configuram como uma importante ferramenta auxiliar para o desenvolvimento de um consumo consciente e da produção automobilística de modo sustentável.

Em 2022, por exemplo, o estado de São Paulo lançou o “Pró Veículo Verde”, estabelecendo um compromisso de descarbonização a fim de estimular a produção de carros híbridos ou movidos a energia limpa (Decreto nº 66.610/2022).

Esse programa previa, basicamente, a possibilidade de apropriação de crédito acumulado de ICMS para o financiamento de projetos, buscando a modernização ou a construção de plantas industriais, o desenvolvimento de novos produtos ou a ampliação de negócio.

Conforme o artigo 174 da CF, a atuação do Estado deve observar as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Dessa forma, a função extrafiscal deve considerar os vários aspectos da dinâmica socioeconômica, o que requer esforços de todos os setores da cadeia. No bom e velho português, as políticas fiscais e as demais políticas públicas devem “andar de mãos dadas”.

No entanto, essa tarefa não é simples e demanda a elaboração de políticas efetivas, não somente benefícios fiscais especificados no papel. Se o intuito é garantir o desenvolvimento sustentável, por uma indústria sustentável, não deveríamos ter condições públicas e industriais para tanto?

Falta de infraestrutura é preocupante

Um bom exemplo disso é a insuficiência de pontos de carregamento para carros elétricos de modelo plug-in. É notório que a venda de veículos elétricos no Brasil vem crescendo, mas esse crescimento não acompanha o desenvolvimento da infraestrutura para esses modelos.

No judiciário brasileiro, a discussão, embora embrionária, tem causado transtornos a condôminos que buscam a instalação de tomadas para carros elétricos em condomínios, no sentido de que a instalação deve estar prevista na convenção condominial [5]; isso sem falar de instalações aptas ao carregamento, por exemplo, nas rodovias. A grande verdade é que as tomadas ainda estão muito longe de serem postos de gasolina.

Enquanto no Brasil esse desenvolvimento ainda é tímido, no âmbito internacional, tem-se percebido algumas medidas para sanar esses problemas. Os Estados Unidos, por exemplo, buscam desenvolver um apoio à infraestrutura de veículos elétricos, comprometendo-se com a criação de rede de estações de carregamento rápido e de corrente contínua, ligando os principais sistemas rodoviários da Costa Atlântica ao Pacífico [6].

O que podemos perceber como um respiro de esperança é que o programa Mover está em consonância com as diretrizes da reforma tributária (EC nº 132/2023), a qual institui o Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre bens e serviços nocivos ao meio ambiente, a fim de desestimular o consumo e garantir a preservação e a proteção ambiental, a partir da extrafiscalidade [7] e da seletividade.

A EC nº 132 de 2023 também traz outras alterações relacionadas ao meio ambiente, como a prorrogação de benefícios fiscais de IPI concedidos às plantas automobilísticas relacionadas a veículos elétricos, flex ou movidos por biocombustação nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste[8], mediante a concessão de crédito presumido de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) até 2032.

Nesse caso, haverá uma redução em 20% entre 2029 e 2032 e poderá ter a sua manutenção condicionada à realização de pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica.

Outro ponto trazido pela EC nº 132 que reforça a importância da extrafiscalidade para fins ambientais é a nova redação dada para o inciso II, do §6º, do artigo 155 da CF, relativo à instituição de alíquotas diferenciadas do IPVA, a depender do impacto ambiental.

Dessa forma, podemos crer que o programa Mover e a reforma tributária trazem consigo uma promessa de melhoria e uma maior atenção à política extrafiscal em relação aos direitos fundamentais, mas é evidente que o problema em torno do desenvolvimento estrutural e social ainda parece estar muito longe de ser solucionado.

Aos poucos, parece que estamos caminhando para agir de forma ecológica, no entanto, o desenvolvimento sustentável tem um longo caminho pela frente, que ainda exige ser trilhado diariamente para se concretizar de forma verdadeira.


[1] OECD - Greengrowth 

[2] https://epd.georgia.gov/forms-permits/air-protection-branch-forms-permits/clean-vehicle-related-tax-credits

[3] https://ww2.arb.ca.gov/news/california-moves-accelerate-100-new-zero-emission-vehicle-sales-2035

[4] https://research.ibfd.org/#/doc?url=/collections/cta/html/cta_cn_s_014.html

[5] Exemplos: Processo nº 1018652-78.2019.8.26.0100 (TJ-SP) e nº 0640555-02.2022.8.06.0000 (TJ-CE)

[6] https://www.eei.org/issues-and-policy/national-electric-highway-coalition

[7] Art. 153, inciso VIII, da CF.

[8] Art. 19, §1º da EC 132/2023.

Publicado no ConJur.


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