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As ilegalidades da ‘malha DCTF’

Tributário

06 de junho de 2023

Em vigor desde o início de 2021, o mecanismo de retenção das Declarações de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) retificadoras criado pelo artigo 17 da Instrução Normativa da Receita Federal 2.005/21 vem se mostrando um grande inimigo das empresas que necessitam da validade de sua certidão de regularidade fiscal para exercer suas atividades.

Em resumo, o dispositivo em questão possibilitou que a Receita Federal retenha as DCTFs retificadoras que tenham por objeto a redução dos débitos tributários inicialmente apurados e declarados pelo contribuinte.

É claro que não há qualquer problema em possibilitar à Receita a possibilidade de analisar as declarações retificadoras transmitidas por contribuintes, uma vez que tal função está intrinsicamente ligada ao munus atribuído àquele órgão da administração pública, qual seja, a fiscalização e a arrecadação tributária.

O problema é que a retenção da DCTF retificadora transmitida pelo contribuinte impede que a respectiva declaração produza efeitos enquanto não devidamente analisada pela fiscalização, conforme § 3º do artigo 17 da IN/RFB 2.005/21. E é aí que reside o grande infortúnio do mecanismo de “malha” criado pela Receita.

Ora, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial já consolidado, a declaração retificadora possui o condão de substituir integralmente a original, nos moldes do artigo 16, § 1º, da mesma IN/RFB 2.005/21, produzindo os mesmos efeitos no cenário de aumento ou redução de débitos (“§ 1º A DCTF retificadora ou a DCTFWeb retificadora terá a mesma natureza da declaração originariamente apresentada e servirá para declarar novos débitos, aumentar ou reduzir os valores de débitos já informados ou efetuar qualquer alteração nos créditos vinculados”).

Ao mesmo tempo, não há qualquer impeditivo para que as declarações retificadoras sejam utilizadas com o objetivo de reduzir o valor do débito inicialmente apurado pelo contribuinte, o que se depreende com facilidade da norma disciplinada no artigo 16, § 6º, da IN/RFB 2.005/21.

Portanto, apesar de ser compreensível a retenção de DCTF retificadora que tenha como objetivo a redução de débitos, não há qualquer motivo para que tais declarações tenham a produção de seus efeitos postergados, o que não ocorre, por exemplo, no cenário de declaração de novos créditos ou majoração daqueles já apurados pelo contribuinte.

A retenção nos moldes propostos pela IN/RFB 2.005/21 vem criando situações bastante indesejadas, uma vez que, ao reduzir o valor dos débitos apurados em DCTF, o respectivo pagamento originalmente vinculado pelo contribuinte a tal lançamento passa a ser “a maior”, o que lhe autoriza a utilizar o saldo para, por exemplo, pagamento de outros débitos por meio de pedidos de compensação.

Como, no entanto, a retenção da DCTF retificadora impedirá que o autolançamento realizado pelo contribuinte produza efeitos, o sistema da Receita não identificará o crédito decorrente do pagamento “a maior” como disponível, o que resultará na glosa imediata da compensação.

Imagine-se, também, o cenário em que o débito declarado pelo contribuinte em DCTF é pago mediante declaração de compensação (DCOMP). Com a retificação da DCTF para redução do débito apurado, o contribuinte naturalmente realizará a retificação da respectiva DCOMP para adequar a compensação ao valor declarado na retificadora.

No entanto, enquanto a DCOMP retificadora produzirá efeitos imediatos, a DCTF retificadora ficará retida e sem efeitos, o que implicará informação de débito pago “a menor” no sistema da Receita Federal, resultando em lançamento automático contra o contribuinte (o débito “descoberto” é imediatamente apontado no relatório de restrições fiscais, sendo o contribuinte intimado a realizar o pagamento do saldo, sob pena de inscrição em dívida ativa).

Essas são apenas algumas das situações que os contribuintes vêm enfrentando rotineiramente na “malha DCTF”.

Assim, a impossibilidade de produção de efeitos da DCTF retificadora enquanto não analisada em procedimento de “malha” pela fiscalização mostra-se totalmente irrazoável, contrariando a norma prevista no artigo 2º da Lei 9.784/99, especialmente se considerado que a IN/RFB 2.005/21 não prevê qualquer prazo para que a análise em questão seja realizada. Isto é, a retenção poderá durar meses, sem que haja qualquer consequência para a Receita Federal.

Ora, não se pode olvidar que a própria IN/RFB 2.005/21, em seu artigo 16, § 2º, disciplina as situações específicas em que a DCTF retificadora não produzirá efeitos, de modo que o impedimento de produção de efeitos em toda e qualquer hipótese de redução de débitos se mostra contraditório com o próprio texto da instrução normativa.

Além disso, convém lembrar que os tributos que são alvo da DCTF estão usualmente sujeitos ao lançamento por homologação, o qual, como é cediço, consiste no dever do contribuinte de apurar e pagar os tributos sujeitos a tal modalidade de acordo com sua interpretação dos fatos e da legislação tributária, sob condição resolutória de ulterior homologação pela administração, conforme artigo 150 do CTN.

Assim, ao impedir que a DCTF retificadora produza efeitos imediatos quando há redução do débito originalmente declarado, a IN/RFB 2.005/21 retira do lançamento por homologação a sua principal característica de autolançamento, aproximando a situação do chamado lançamento por declaração, regulado no artigo 147 do CTN, em que as informações são prestadas previamente pelo contribuinte ao fisco que, analisando tal declaração, irá efetivar o lançamento posteriormente.

Nesse contexto, não há dúvida que o mecanismo instituído pelo artigo 17 da IN/RFB 2.005/21 vai contra o instituto do lançamento por homologação, ao qual estão legalmente sujeitos os tributos lançados por meio da DCTF.

No limite, não seria nada absurdo concluir que a IN/RFB 2.005/21 atenta contra o próprio texto constitucional, uma vez que traz evidente inovação sobre o lançamento tributário, matéria destinada à lei complementar pelo artigo 146, III, “b”, da Constituição.

Por fim, é importante destacar que o Fisco possui o prazo de cinco anos para analisar as declarações transmitidas pelos contribuintes, de modo que eventual redução indevida realizada em DCTF poderá ser questionada e alvo de lançamento de ofício durante todo esse período, o que torna ainda mais irrazoável a retenção da declaração retificadora sem produção de efeitos.

Conclui-se, portanto, que a sistemática instituída pelo artigo 17 da IN/RFB 2.005/21 deverá ser revista pela administração tributária, uma vez que (i) atenta contra dispositivos daquela própria instrução normativa, (ii) transmuta ilegalmente o lançamento por homologação em lançamento por declaração, além de (iii) ser irrazoável por não prever qualquer prazo para que a fiscalização analise a retificação ou deixe de retê-la.

Publicado no JOTA.

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