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Subsunção dos municípios às regras gerais de direito financeiro editadas pela União

Tributário

10 de março de 2023

A Constituição, em essência, pretendeu constituir a República Federativa do Brasil. República diz respeito à adoção do modelo de freios e contrapesos, em que os "poderes" se regulam mutuamente, o que deveria levar a uma harmonia. Federativa, por sua vez, diz respeito à organização estrutural do Estado, que compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos eles autônomos no limite da CF.

Outrossim, é importante relembrar que os municípios foram "emancipados" em 1988, eis que a CF os tornou entes autônomos [1]. O aumento da /responsabilidade, porém, não foi acompanhada de concessão da receita tributária suficiente, o que resultou em um verdadeiro desnível federativo em desfavor dos municípios [2]. Como já abordado anteriormente, o pacto federativo é desequilibrado em favor da União, que centraliza grande parte da receita [3], questão que também impacta os Municípios, que dependem de repasses para manter a máquina pública operante.

Esse desenho de república federativa se repete na construção do sistema financeiro tributário nacional, que guarda fortes raízes na CF, como se depreende de seu "Título VI". É possível perceber que o recorte da competência tributária é taxativo, de modo que um ente federado não pode invadir a competência de outro. Mas não é toda norma em matéria tributária que será considerada exercício de competência tributária privativa, eis que existem matérias gerais que, a princípio, poderiam ser tratadas por qualquer ente federado.

Relembra-se que a competência tributária pode ser classificada em: 1) privativa, que se refere ao exercício da competência para instituir e cobrar os tributos previstos na CF; 2) comum, sendo aquela que é atribuída aos entes federados em geral, ao passo em que todos podem instituir os mesmos tributos, como por exemplo as taxas e contribuição de melhoria; 3) residual atribuída à União para a instituição de tributos sobre bases econômicas distintas daquelas já estabelecidas no texto constitucional e, por fim, 4) concorrente, quando a competência da União será limitada a estabelecer normas gerais e os demais entes terão competência suplementar, no caso de uma ausência de lei federal, a competência legislativa dos entes políticos será plena [4].

Para solucionar o possível conflito normativo que surgiria da possibilidade de que fossem criadas leis conflitantes, a CF previu que existem matérias que são de competência legislativa concorrente, no que se inserem as regras gerais de direito tributário e financeiro. Nestas hipóteses, a União apenas pode criar regras gerais, que serão observadas pelos estados, cabendo aos municípios "complementá-las no que couber", como se depreende da leitura conjunta de seus artigos 24 e 30 [5].

A lógica adotada pela Constituição faz todo o sentido, tendo em vista que o país possui extensão continental, ao atribuir preferência à União para edição de normas gerais, estas regras, por sua vez, privilegiará o ente mais abrangente territorialmente em detrimento do ente menos abrangente. Caso a União adote uma regra geral, ela será válida em todo território nacional, por sua vez, na falta da regra da União, caso o Estado a edite, ela abarcará diversas municipalidades. Pela mesma ótica, caso o Município edite uma regra geral, ela só será válida em sua circunscrição, não irradia qualquer efeito para outro ente federado, o que a torna uma norma específica ao ente que a editou.

A taxa Selic, instituída pela Lei nº 9.250 de 1995, é a regra geral de âmbito nacional que, além de índice utilizado para atualização dos débitos tributários federais, serve como um limite estabelecido para reger a autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para fixarem os seus próprios percentuais de atualização monetária e juros monetários [6].

Logo, ainda que os estados e municípios tenham autonomia para instituir seus próprios indexadores para atualizar seus créditos tributários, sempre que os percentuais estaduais ou municipais superarem os percentuais divulgados para a taxa Selic, estes últimos devem prevalecer como teto.

Ocorre que os demais entes federados legislaram livremente em matéria de competência concorrente ao fixarem encargos moratórios na cobrança de dívidas tributárias, matéria de direito financeiro, em patamar superior ao adotado pela União para o mesmo fim. O problema relativo à legislação estadual chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Agravo em Recurso Especial (ARE) nº 1.216.078 RG / SP (tema 1.062), que foi discutido qual seria a abrangência da competência concorrente suplementar dos entes federados estados e Distrito Federal em matéria de direito financeiro, eis que a União adotou a taxa Selic, índice que resulta em atualização inferior aos adotados pelos demais entes federados [7].

Como se extrai da decisão do ministro Dias Toffoli, proferida em agosto de 2019, houve reafirmação jurisprudencial do STF com efeitos vinculantes a todo Poder Judiciário, no sentido de que os entes federados podem legislar em matéria de regra geral tributária, desde que observem o limite previsto como regra geral. A tese fixada no julgamento foi de que os estados e o Distrito Federal podem legislar sobre índices de correção monetária e taxas de juros de mora incidentes sobre seus créditos fiscais, limitando-se, porém, aos percentuais estabelecidos pela União para os mesmos fins, o qual seja, a taxa Selic.

Ocorre que os municípios não aplicam a limitação por entenderem que o Tema nº 1.062 do STF apenas se aplica aos estados e do Distrito Federal, de modo que os municípios poderiam legislar livremente sobre encargos moratórios, eis que supostamente seriam assuntos de interesse local.

Nota-se que esse entendimento, além de ofender o pacto federativo e os artigos 24 e 30 da CF, cria uma espécie de exceção à regra geral em favor dos Municípios, que estariam à margem das regras uniformizadoras previstas pela União, como também desvirtua o próprio sistema de precedentes que o Brasil pretende fortalecer, como sinalizado no Código de Processo Civil de 2015. Isso, pois não é a tese fixada em um julgamento que vincula o Poder Judiciário, mas sim as razões de decidir empregadas pelos julgadores na solução do caso. É dizer, não é a conclusão que vincula, mas sim as razões que levam à conclusão.

Em suma, tem-se o silogismo: entes federados se limitam à regra geral da União; o município é um ente federado; sendo o município um ente federado, este se submete à regra geral fixada pela União.

Vale ressaltar que alguns tribunais pátrios não aplicam o Tema 1.062 do STF para limitar os encargos cobrados pelos municípios. Isso ensejou inclusive a afetação do RE 1.346.152 como tema de repercussão geral nº 1.217 [8], em 20/05/2022, para que seja atribuído tratamento uniforme à matéria em nível federativo. É válido ressaltar que o julgamento já poderia ter se encerrado, considerando a integridade da jurisprudência, o que evidencia uma falha por parte do STF na condução de processos que gozam de relevante impacto econômico em matéria fiscal, postergando sua solução e, assim, promovendo insegurança jurídica para toda a sociedade.

Isso, pois de um lado os municípios deliberadamente violam direitos dos contribuintes e, por outro, o potencial impacto econômico, causado também em razão da morosidade da resolução processual em matérias de grande repercussão, pode levar à impossibilidade de se manter os efeitos da decisão, o que servirá de fundamento para eventual modulação dos efeitos decisórios.

É evidente, portanto, que o atual contexto da jurisprudência constitucional leva o jurisdicionado a crer que os municípios não possuem competência legislativa para fixar correção e juros moratórios em patamar superior ao estabelecido pela União. Assim, caso isso venha a ocorrer, poderá o contribuinte buscar o Poder Judiciário para que seja determinada a limitação dos acréscimos moratórios incidentes na cobrança de créditos tributários à taxa Selic. Inclusive, caso o STF venha a mudar de ideia acerca da limitação dos encargos à regra geral, é imperioso que seja resguardada a boa-fé daqueles que confiaram nas razões de decidir do tribunal, em respeito à segurança jurídica.

Publicado no Conjur.

 

Referências:

[1] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui.

[2] TRISTÃO, José Américo Martelli, A Administração Tributária dos Municípios Brasileiros: uma avaliação do desempenho da arrecadação. São Paulo: Eaesp/FGV, 2003. (Tese de doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV. Área de Concentração: Organização, Recursos Humanos e Planejamento). Disponível aqui.

[3]Conjur. Minas Gerais obtém autorização judicial para refinanciar débitos com a União. Disponível aqui.

[4] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário: Completo. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 166-167.

[5] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui.

[6] Brasil. Lei nº 9.250 de 26 de dezembro de 1995. Disponível aqui

[7] Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 1.216.078 São Paulo. Disponível aqui

[8] STF. RE 1346152. Disponível aqui

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