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Minas Gerais obtém autorização judicial para refinanciar débitos com a União

Tributário

16 de fevereiro de 2023

A análise da estrutura do pacto federativo brasileiro deixa evidente que não há um equilíbrio entre os entes federados. Isso, pois a União, sempre que possível, amplia os limites de sua competência. No federalismo fiscal, esse desequilíbrio se revela na repartição de receitas tributárias, seja pelos repasses de impostos que sofrem condições para que sejam realizados, seja pelo aumento da arrecadação com contribuições que não são repartidas.

O problema dos estados se revela na insuficiência de receitas próprias para que possam arcar com todos os serviços públicos que devem ser por eles prestados, o que implica em um déficit constante das contas públicas. É importante lembrar que a Constituição Federal de 1988 (CF) prevê em seu artigo 6º que são direitos sociais e garantias constitucionais de todos os indivíduos o acesso à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia e segurança. Assim, para que se mantenha operante a máquina pública, os estados acabam recorrendo à União para solicitar empréstimos, o que, no longo prazo, agrava o desnível federativo.

Este contexto revela, portanto, uma grande ingerência da União no poder de gestão dos estados, pois ante a existência de débito, o credor pode exigir medidas de contingência por parte do devedor, algo similar ao que acontece quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) empresta dinheiro a países emergentes: limita-se a autonomia e impõe-se a redução de despesas.

Para viabilizar a redução do passivo dos estados e estimular o alcance de um equilíbrio de contas públicas, foi criado o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), por meio da Lei Complementar nº 159, de 19 de maio 2017 [1]. Em termos gerais, o regime surge com o objetivo de auxiliar os estados e/ou o Distrito Federal quando estejam em grave desequilíbrio financeiro com o intuito de corrigir desvios que afetem a solvência dos referidos entes federados.

O RRF é orientado pelos princípios da sustentabilidade econômico-financeira, da equidade intergeracional, da transparência das contas públicas, da confiança nas demonstrações financeiras, da celeridade das decisões e da solidariedade entre os Poderes e os órgãos da administração pública. O referido regime permite que estados, em situação de desequilíbrio fiscal, gozem de benefícios como a flexibilização de regras fiscais, concessão de operações de crédito e a possibilidade de suspensão do pagamento da dívida.

O processo de homologação da adesão do estado ao RRF se dá em três fases; 1) a avaliação do pedido de adesão pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN); 2) a elaboração do Plano de Recuperação Fiscal (PRF) como um documento referência, no qual constam não apenas metas e compromissos, mas também o detalhamento das medidas de ajustes a ser implementadas; e, por fim, 3) o Ministério da Fazenda realiza a avaliação do PRF e seus respectivos impactos práticos para a redução do passivo.

Dentre as medidas desenvolvidas no Plano de Recuperação Fiscal, estão compreendidas no artigo 2º; 1) a alienação total ou parcial da participação societária dos estados nas empresas estatais para quitação do passivo, 2) a adoção pelo Regime Próprio de Previdência Social para que mais se assemelhe as regras aplicáveis aos servidores públicos da União, 3) a limitação do crescimento das despesas com o teto de gasto e a gestão financeira centralizada. Percebe-se, portanto, que todas as medidas visam retardar o crescimento da dívida dos estados [2].

Ao ingressar no RRF, a dívida que o estado possui com a União é suspensa e passa a ter um prazo de até 12 meses para o pagamento da primeira parcela. Além disso, o pagamento da dívida possui retomada gradativa de 11,11% ao ano, ou seja, somente nove anos após a entrada no regime é que o estado retornará ao pagamento integral das parcelas [3].

Assim, exatamente em razão do ideal de estimular o ajuste estrutural das contas públicas para que se garanta a solvência financeira dos estados, a adesão ao RRF foi considerada como prioridade pelo governo de Minas Gerais para reduzir o passivo junto à União, que ultrapassa a monta de R$ 150 bilhões [4].

Neste contexto, entre 1998 e 2019, o Estado de Minas pagou R$ 45,8 bilhões de juros e amortizações da dívida renegociada com a União (no âmbito da Lei 9.496/97, incluindo-se o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes) [5].

Mesmo com o pagamento bilionário, a dívida do estado de Minas Gerais continua sendo atualizada, sobretudo em razão da dificuldade de amortização de parcelas pelo volume crescente dos encargos moratórios devidos. A Diretoria Central de Gestão da Dívida Pública de Minas Gerais atualiza este débito quadrimestralmente e apurou que, no 2º quadrimestre de 2022, a dívida pública cresceu 1,17% em relação ao quadrimestre anterior (saiu de R$ 155,48 bilhões em abril de 2022 para R$ 157,30 bilhões em agosto de 2022) [6].

Com os benefícios do RRF, segundo o governador, a dívida do estado com a União, só no ano de 2023, é de R$ 2,7 bilhões. Caso não venha aderir ao programa, a dívida para o mesmo ano sobe para R$ 10,9 bilhões, valor este preocupante para o funcionamento da máquina pública [7].

A dívida contratual, decorrente de operações de crédito, do refinanciamento de dívidas com a União e do parcelamento de débitos previdenciários representam mais de 90% da dívida pública auditada do estado de Minas Gerais.

A adoção de medidas que postergam o pagamento da dívida pública já é algo conhecido pela administração mineira. No final de 2018, o governo de Minas obteve decisão liminar junto ao STF que suspendeu o pagamento de cerca de R$ 40 bilhões à União para que pudesse manter operante a máquina pública. Em maio de 2022, este valor veio a ser objeto do contrato de confissão e refinanciamento de dívidas, previsto no artigo 23º da Lei Complementar 178/2021[8], que estabeleceu o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal dos Estados [9], de modo que foi concedido abatimento dos encargos financeiros no importe de R$ 6,04 bilhões e, o restante da dívida, foi parcelado em 30 anos.

É importante ressaltar que, no caso do RRF, a adesão não decorre da mera vontade do Poder Executivo, eis que o artigo 3º, inciso V, do Decreto Federal nº 10.681/2021, prevê ser necessária a participação do Poder Legislativo por meio da aprovação de lei estadual que autorize o Estado a ingressar no regime [10].

Para viabilizar a inclusão do estado de Minas Gerais, em 2019 foi encaminhado o Projeto de Lei 1.202 [11] pelo Poder Executivo, colocado em pauta de urgência pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (AL-MG). Fato é que, durante o período de 2019 a 2022, o presidente da AL-MG, por acreditar na possibilidade de o estado de Minas equilibrar suas contas sem interferência federal direta e, eventualmente, serem estabelecidos novos e melhores acordos com a próxima gestão governo federal, não pautou o projeto de lei para votação.

Entretanto, durante a audiência pública ocorrida no dia 23/11/2022, o subsecretário do Tesouro Nacional da Secretaria de Estado de Fazenda, Fábio Rodrigo Amaral de Assunção, reforçou o posicionamento do governo de Minas no sentido de que o estado, devido ao pagamento corrente da dívida, não conseguiria equilibrar suas contas públicas sem a ajuda da União [12].

Assim, fruto de discussões políticas que entendiam ser necessário que o governo estadual realizasse tratativas da negociação com o governante que assumiria o Executivo federal, o tema não foi colocado em votação pela casa.

É exatamente neste contexto que o governo de Minas Gerais, que entendia ser necessária a adesão ao RRF para que pudesse ter um alívio temporário nas contas públicas e, assim, organizar suas despesas necessárias, ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 983, que teve como objetivo ultrapassar a resistência ofertada pela AL-MG e, mesmo sem aprovação de lei autorizativa, aderir ao RRF.

A ADPF é instrumento que permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) o controle concentrado de constitucionalidade para que atue, no cenário abordado, em prol da proteção de grupos vulneráveis [13]. Tendo em vista a alegação de inércia para aprovação da lei, o socorro ao judiciário surge, em um contexto de políticas públicas, para que se prevaleça o cumprimento efetivo das garantias constitucionais básicas.

Como mais um fundamento para o litígio, sustenta o estado que a Secretaria do Tesouro Nacional apenas negou o requerimento de celebração contratual para adesão ao RRF pela ausência da autorização legislativa para a devida operação do crédito.

O posicionamento do STF ocorreu em duas etapas. No primeiro momento, em junho de 2022, o ministro Kássio Nunes Marques deferiu em partes o pedido da tutela de urgência formulada na ADPF 983 [14]. Na decisão, reconheceu a omissão da AL-MG em debater o projeto de lei e autorizou que o estado de Minas Gerais prosseguisse com a elaboração do plano de recuperação junto à Secretaria do Tesouro.

Em um segundo ato, após realizar as metas para recuperação, o governo de Minas não obteve respaldo da AL-MG para que o Ministério da Economia avaliasse o plano. Ao ensejo, a STN alegou que a decisão concedida em junho de 2022 apenas autorizava as tratativas para elaboração do PRF e não para a efetiva adesão.

Por esse motivo, o estado recorreu novamente ao judiciário para concessão da medida que o autorizasse a ingressar no Regime de Recuperação Fiscal. Na última decisão, de dezembro de 2022, o ministro Nunes Marques reforçou que o indeferimento do pedido pela STN era incoerente, tendo em vista que a decisão anterior supre a autorização da Assembleia e, assim, concedeu permissão para operação de crédito destinada ao contrato de refinanciamento [15].

Em exame preliminar do segundo pedido, o ministro considerou, ao contrário da Secretaria do Tesouro, que não há necessidade de norma específica que autorize a adesão do refinanciamento. Segundo ele, basta apenas que tal previsão conste no plano de recuperação fiscal.

Com o objetivo de incentivar a saída do estado da insolvência orçamentária, estimular o desenvolvimento social e oferecer incentivos ao federalismo cooperativo, as decisões mencionadas surgem para assegurar a efetividade das normas constitucionais. Inclusive, um dos fundamentos da referida decisão foi a essencialidade do regime para que os estados não entrem em colapso ou em situação fiscal irreversível.

Assim, com a adesão ao regime, o estado passará a ter mais recursos para infraestrutura, para recomposição salarial e demais setores da administração pública. A visão a ser levantada é que, ao fomentar o desenvolvimento de atividades rentáveis em Minas Gerais, o governo poderá, a médio ou longo prazo, pagar o valor do débito sem contribuir para um maior endividamento.

 Publicado no Conjur.

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[1] Brasil. Lei Complementar Nº 159, de 19 de Maio de 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp159.htm. Acesso em: 03 de fevereiro de 2023.

[2] Governo federal, Tesouro Nacional Transparente. Regime de Recuperação Fiscal (RRF) Estados e Municípios. Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/estados-e-municipios/regime-de-recuperacao-fiscal-rrf. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[3] Governo federal, Tesouro Nacional Transparente. Regime de Recuperação Fiscal (RRF) Estados e Municípios. Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/estados-e-municipios/regime-de-recuperacao-fiscal-rrf. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[4] Brasil de Fato. Em MG, Romeu Zema vai entregar o Estado com mais dívidas do que recebeu em 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/08/em-mg-romeu-zema-vai-entregar-o-estado-com-mais-dividas-do-que-recebeu-em-2019. Acesso em: 03 de fevereiro de 2023.

[5] Brasil de Fato. A eterna dívida de Minas Gerais. Disponível aqui. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[6] Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais. Relatório Quadrimestral da Dívida - 2º Quadrimestre de 2022. Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/tesouro-estadual/divida-publica/relatorio-quadrimestral-da-divida/2-quadrimestre-de-2022/. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[7] Diário do Comércio. Zema insiste na adesão do Estado ao Regime de Recuperação Fiscal. Disponível em: https://diariodocomercio.com.br/economia/zema-insiste-na-adesao-do-estado-ao-regime-de-recuperacao-fiscal/. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[8] Brasil. Lei Complementar Nº 178, de 13 de Janeiro de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp178.htm. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[9] Diário do Comércio. Decreto de Zema prevê adesão de Minas ao RRF. Disponível em: https://diariodocomercio.com.br/economia/decreto-de-zema-preve-adesao-de-minas-ao-rrf/. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[10] Diário Oficial da União. Decreto Nº 10.681, de 20 de Abril de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.681-de-20-de-abril-de-2021-315148362. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[11] Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Projeto de Lei 1.202/2019. Disponível em: https://www.almg.gov.br/projetos-de-lei/PL/1202/2019. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[12] Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Regime de Recuperação Fiscal pauta questionamentos em audiência. Disponível em: https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/Regime-de-Recuperacao-Fiscal-pauta-questionamentos-em-audiencia/. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[13] IDP Law Review. Os Direitos Indígenas em disputa na ADPF 709: Há caminhos possíveis na jurisdição constitucional? Disponível em aqui. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[14] Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 983 Minas Gerais. Disponível aqui: . Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.

[15] Supremo Tribunal Federal. Segunda Tutela Provisória Incidental na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 983 Minas Gerais. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF983DECISaO.pdf. Acesso em: 3 de fevereiro de 2023.


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