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A justiça fiscal como limitação à tributação da pensão alimentícia

Tributário

24 de janeiro de 2023

A sociedade passou por uma série de transformações nos últimos séculos, o que provocou reflexos no sistema jurídico, sobretudo no tocante a quais direitos são assegurados aos indivíduos.

A Constituição de 1988, no contexto brasileiro, representa o ideal de efetivação não só de um mínimo existencial, mas sim da efetivação da dignidade da pessoa humana, para que seja alcançado o objetivo da República de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, garante-se aos indivíduos não "só comida", mas também "diversão e arte" [1].

O presente artigo visa compreender os limites à tributação de renda, especialmente considerando verbas de natureza alimentar e assistencial, que evidenciam uma evolução social do Direito para a satisfação da justiça social por meio de uma tributação justa que não ofenda a dignidade humana.

A justiça social se manifesta na efetivação das garantias constitucionais pelos instrumentos do Direito, cujo fundamento está estampado já no 1º artigo da Constituição. Dessa forma, assegurar uma vida justa, digna, com igualdade de condições profissionalizantes, educacionais e informacionais é um objetivo constitucional que deve ser efetivado, também, pela tributação digna e justa, de modo que se avalie a necessidade e a viabilidade da cobrança de tributo frente à realidade de cada contribuinte.

Essa limitação ao poder de tributar para que o tributo não seja óbice para que o indivíduo tenha uma vida digna materializa-se no princípio da capacidade contributiva. Desse modo, cada um contribui com o que pode, sendo necessário que a regra que impõe o dever de pagar tributo não consista em óbice para o acesso a uma vida digna. Assim, este princípio exerce importante papel no sistema ao destacar que o tributo também visa a consecução da justiça social e fiscal, de modo a assegurar valores indispensáveis à boa convivência e à dignidade humana, a partir do binômio da necessidade e da possibilidade de recursos.

Por isso, é necessário que o fato tributável revele uma manifestação de riqueza, sob pena de não ser possível cobrar tributo sobre ele [2]. Dessa forma, é indispensável analisar a hipótese de incidência de uma norma tributária, a fim de determinar os seus limites dentro de uma relação jurídico-tributária, bem como os valores e os princípios relacionados.

Especialmente no tocante ao Imposto de Renda, a justiça fiscal tem importante papel em regular a sua aplicabilidade e a sua incidência em sede de pensão de alimentos, considerando a natureza do instituto dos Alimentos e o aspecto material do imposto.

Veja-se que Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) é um tributo de competência da União Federal que incide sobre renda e proventos de qualquer natureza, conforme previsto no artigo 153, III, da Constituição Federal (CF). Cumpre esclarecer que não é todo e qualquer ingresso financeiro que será sujeito à incidência do tributo, eis que, por força do princípio constitucional da capacidade contributiva [3], não haverá incidência tributária sobre valores que sirvam para a manutenção de um padrão mínimo de vida com dignidade.

Assim, somente haverá incidência do IRPF quando ocorrer efetivamente um acréscimo patrimonial positivo. Isso porque existe um conceito constitucional de renda [4] que demanda a análise de princípios como o da capacidade contributiva, cuja materialização ocorre, inclusive, nas deduções legais previstas e nas faixas de incidência do imposto.

Dito em outras palavras: embora renda pressuponha a ocorrência de um acréscimo patrimonial, nem todo acréscimo ou ingresso será renda e constituirá em realização do aspecto material que permita a incidência do imposto de renda.

Ainda nesse contexto, apesar de o aspecto material ser auferir rendimentos de qualquer natureza, a interpretação sobre a abrangência dessa expressão deve ser restritiva, eis que não é qualquer ingresso que constitui acréscimo passível de tributação [5]. Isso implica no reconhecimento de que o conceito de "rendimento" não abarca a integralidade dos ingressos financeiros de um determinado contribuinte, eis que podem ser ingressos desvinculados do trabalho, do investimento, do capital ou outra fonte de renda [6].

É isso que se verifica no tocante ao rendimento decorrente do recebimento de alimentos por parte dos alimentandos. Embora consista em um ingresso patrimonial, não se considera como "ingresso positivo" para fins de incidência do imposto de renda, considerando que este se destina à promoção de valores constitucionalmente assegurados, como o direito à alimentação, à moradia, à saúde, à profissionalização, à cultura e à educação, os quais visam não somente à garantia de uma sobrevivência, mas à garantia de uma vida digna, com fundamento nas diretrizes constitucionais.

A pensão alimentícia, também chamada de alimentos pela doutrina civilista, diz respeito às prestações devidas pelo alimentante para que o alimentado possa custear "todas as coisas básicas de que uma pessoa precisa para sobreviver", como "cuidados com a saúde, o vestiário, a habitação, o lazer, o ensino etc" [7], fatores estes que devem ser levados em consideração para realização da justiça fiscal e da justiça social.

Inclusive, esses valores são marcados pela "mutabilidade" [8], o que permite redução, ampliação e até mesmo extinção da obrigação de prestar alimentos, em razão de eventual mudança financeira, tanto no que se refere ao patrimônio do alimentante, quanto ao do alimentado.

Neste ponto, é irrelevante a origem da obrigação alimentar, seja ela decorrente do poder familiar ou de demais vínculos de parentesco, relacionados com o binômio da necessidade e da possibilidade, uma vez que os alimentos, por sua natureza diretamente atrelada à dignidade humana e à solidariedade familiar, não constituem renda ou proventos passível de subsunção à hipótese de incidência do IRPF.

O que se verifica, portanto, é que independente do valor ser variável ou de sua origem, ele é compatível com o que o alimentante e o alimentando podem e precisam, respectivamente. Assim, não serão considerados como acréscimo patrimonial para fins de incidência do IRPF os alimentos pagos ao alimentando, uma vez que destinados a assegurar o "mínimo vital" [9] deste.

Ressalta-se, inclusive, que a imposição de gravame tributário a rendimento que não constitui renda ou provento, isto é, acréscimo patrimonial positivo e novo, representa uma ofensa à justiça fiscal, tendo em vista que desconsidera o princípio da capacidade contributiva. Isso porque, o princípio em comento exige, principalmente, a clara vinculação do fato jurídico com o fato descrito na hipótese de incidência, de modo que tudo aquilo que não configure renda ou proventos de qualquer natureza não pode ser utilizado como fato gerador do imposto de renda [10].

Igualmente, a lesão à capacidade contributiva está diretamente atrelada à lesão ao princípio da vedação ao confisco. Isso porque o instituto do não confisco visa a "preservar a capacidade econômica do indivíduo" [11], evitando que o Estado, por meio da tributação, invada de modo gravoso e irreversível o patrimônio particular. Assim, um imposto que extrapola os ditames de sua materialidade, como o caso de tributação de rendimento que não constitui renda ou provento passível de incidência de imposto de renda, revela efeito confiscatório.

Ora, se os alimentos constituem meio de compensação financeira, a fim de permitir uma vida digna, evidente que a tributação extrapola os ditames da capacidade contributiva, passando a ter efeitos confiscatórios, o que avilta a ideia de justiça fiscal.

Exatamente nesse contexto a questão foi recentemente objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.422, que tinha como objeto a inconstitucionalidade do artigo 3º, §1º, da Lei nº 7.713, de 1988, bem como os artigos 5º e 54 do Decreto nº 3.000, de 1999 [12], que previam a incidência de IRPF sobre pensão alimentícia, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

O STF entendeu que o imposto de renda só incide quando se verificar a existência de um efetivo acréscimo patrimonial, circunstância esta que inexiste nos valores recebidos a título de pensão de alimentos, além de ressaltar o bis in idem decorrente da inclusão dos valores na base de cálculo do IRPF no patrimônio do alimentante, submetido a nova inclusão quando recebido pelo alimentando, situação que não ocorreria caso o alimentando fosse dependente do alimentante.

Este entendimento é o mais acertado do ponto de vista jurídico e social, pois considera a natureza e a finalidade dos alimentos, cujo intuito é garantir o mínimo existencial e a subsistência daquele que não possui condições de garantir o seu sustento.

Inclusive, conforme destacado pelo ministro Dias Toffoli, a não incidência de IRRF sobre pensão alimentícia não impede que a administração fiscal fiscalize os contribuintes que as recebam para verificar existência de fraudes, ocasião em que será cobrado o crédito tributário omitido com as eventuais multas aplicáveis, nos termos do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN).

Após o trânsito em julgado da ADI nº 5.422, a Receita Federal do Brasil possibilitou que os contribuintes pedissem a restituição do IRRF pago sobre pensão alimentícia por meio de retificação das declarações transmitidas nos últimos cinco anos (2018-2022), retirando o rendimento da categoria de "Rendimentos Tributáveis" e o incluindo na aba "Rendimentos Isentos e Não Tributáveis".

Em síntese, a justiça fiscal representa um limite à tributação, sendo exercida por meio do respeito à capacidade contributiva e à vedação ao efeito confiscatório da tributação, a fim de garantir os direitos fundamentais, em consonância com o dever de arrecadação tributária.

Por isso, o fato gerador do imposto de renda deve guardar exata coincidência com o aspecto material descrito na norma, de modo que a tributação de pensão de alimentos, por esta não configurar acréscimo patrimonial positivo, mas mera entrada de valor, configura desvirtuamento da justiça social e fiscal, representando relevante preocupação com o direito constitucional à dignidade humana, com o direito aos alimentos e com o direito à tributação justa.

Cabe, por fim, apenas uma reflexão acerca da efetividade da decisão do STF sobre a não tributação das pensões alimentícias, que diz respeito à inexistência de proteção constitucional à dedução legal concedida ao pagador de pensão alimentícia.

Dessa forma, considerando essa dedução como mero benefício fiscal concedido ao pagador, poderá ser revogada a qualquer tempo pelo legislador. Essa revogação levaria à tributação efetiva da pensão alimentícia em patamar potencialmente maior que o do cenário anterior, partindo da premissa de que a base tributável de quem paga a pensão é maior do que a de quem recebe.

 


[1] Trecho da música Comida, dos Titãs. Disponível em: https://www.letras.mus.br/titas/91453/.

[2] ABROSIO, Claudia Cristina dos Santos; LISBOA, Julcira Maria de Mello Vianna. O princípio da capacidade contributiva como instrumento concretizador da justiça social e fiscal. In: DINIZ, Maria Helena (coord.). Direito em Debate. São Paulo: Almedina, 2020. v. 2., p. 85-102, p. 95.

[3] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29ª edição, revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Malheiros, 2013, p. 134.

[4] FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Imposto sobre a Renda: uma proposta de diálogo com a contabilidade. São Paulo: Fórum, 2019. p. 62.

[5] "[…] Na interpretação da expressão “proventos de qualquer natureza” não podemos admitir que se incluam, em seu bojo, ingressos que não sejam oriundos de uma riqueza criada em razão de um fato ou atividade (diferente do trabalho, do capital ou da sua combinação)". MURPHY, Celia Maria de Souza. O imposto sobre a renda à luz da constituição. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2020, p. 111.

[6] MURPHY, Celia Maria de Souza. O imposto sobre a renda à luz da constituição. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2020, p. 113.

[7] DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe. Curso Didático de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Atas, 2014, p. 1054.

[8] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Volume 6. 18a Edição. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 180.

[9] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29 edição, revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Malheiros, 2013, p. 141.

[10] MURPHY, Celia Maria de Souza. O imposto sobre a renda à luz da constituição. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2020, p. 59.

[11] Id. p. 61.

[12] Esses artigos foram substituídos pelos artigos 4º e 46 do Decreto 9.580 de 2018.


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